Carolina de Jesus

Carolina de Jesus

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Queimam a Santa no Fogo Profano

Frio, gélido e cálido
Eres tão paciente
Possuis o rosto lupino
A pele tão morna
E desperto-me primaveril
Na bruma rodeada
De alvos jasmins
Pés de maçã, bétulas claras
E outras coisas calorosas.
Que me tornam mais
Pura aos olhos ternos
De minha mãe.
E queimam minha face,
A sua face.
Os nossos troncos
A minha relva, sacra
Na fogueira dos bons samaritanos
Aqueles que a ninguém feriram.
Silêncio em brasa.
A flora, em chama.
A mãe natureza permanece adormecida.
Soterrada por milhões de passos,
De colo empobrecido
Por seus choros ácidos
E suas gargantas, secas.
Descansa, nossa mãe de todos.
Fazes que celebremos em outra hora.
Esperamos o interrompido festim, calados.
Até que se consume o fogo
Na alma dos condenados.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Dadá

Hannah Höch


Duas meninas, amigas; e não havia memória de conhecimento.
Um avião caiu, ninguém morreu. As crianças eram guerrilheiras: salvam aos outros. (O avião que esqueceu de pousar).
Um casal e um amigo: fazedores de filmes com barba -- inclusive a mulher?
Os homens são capturados por um espírito que gosta de arte -- vive nas paredes, nos grafites, se esconde trocando de estilo.
A mulher fica.
A mulher busca o espírito de cabelos negros e compridos, cara corrompida, que suga com a boca quem lhe interessa, pra que vire sua parte e propriedade.
A mulher corre nas ruas vãs de uma quase Cuba, onde parentes a aguardam nas esquinas -- truque do vilão? saudade de memória?
Carros perfeitamente velhos carregam poeiras e passageiros -- ela finge que fala espanhol e pede um táxi, pra ser enganada pela multidão; mas táxis (bordôs) são só o que existe na cidade.
Ela procura um especialista pra resolver seu problema -- um especialista em cabelos pra achar o seu marido cabeludo, levado por uma coisa que tem mais cabelo do que alma.
O especialista não coopera -- pudera, ele não entende a coitada, só enxerga cabelos onde não tem nada. No cartaz que ele lhe mostra, vários tipos de calvície -- ela tenta guardar a memória porque do marido só restou um fio bem tênue de lembrança... e agora?
Acordo nesse momento, e agora?

Agora, eu sou uma menina casta castigada por uma voz em uma cabeça tendenciosa.  A minha. Uma voz forçosa me faz querer-me libertar por vias sexuais de um aprisionamento interno, de um opressor patriarca, de uma vida de luxo e luxúria. Um garoto permissivo, pensa com outras partes do corpo. Eu anseio, eu sinto fisicamente uma dor de querer sem ter benquisto. Eu hesito. Eu mudo.
Agora eu só vejo uma mulher que carrega no ventre um fruto de um amor global, mas ela não é ela. Ela é várias ao mesmo tempo. E muda de humor e provoca e testa aquele que não a deixa, não a perde, não a larga. Mas no fim da convivência cansativa, quando ambos chegam à hora do palco -- a verdade --, ela tem medo, foge, corre pro banheiro alegando mal-estar. Mas nesse mal-estando, no espelho mais próximo, em um momento passado num segundo, ela... sou eu. E só percebo quando eu deixo o banheiro. Tremendo de hesitação mas determinada a subir em um palco de uma arte que não domino. Eu não sei dançar.
Mas então, no final do segundo passo traçado sob os olhos críticos do mundo fora de um banheiro, eis que me surge uma mão estendida. Um homem esguio, um sorriso bondoso. Eu mergulho na leveza de segurar sua mão pronta ao meu amparo e deste instante em diante, eu sei que não vou mais cair.
E subimos neste palco de dança e eu seguro em sua mão e costas altas e eu flutuo em seus pés enquanto sinto a gravidade de estar sendo olhada por uma plateia inominável. Todos vestidos de gala como num teatro suntuoso d'uma década pequena. E eu danço olhando nos olhos do homem alto, há uma peça; encenamos "A Megera Indomada" -- tudo aquilo que um dia eu criei sem confiança se torna verdade com propriedade e balé e cenário. Chega na hora do casamento da megera. Por entre os nossos próprios sussurros sarcásticos, nos beijamos singelamente sob uma salva de palmas da plateia engomada. Um beijo terno como eu nunca vira mas não há tempo pra surpresas: a dança continua. E brincamos e rimos com a menção aos nossos erotismos enquanto nos apresentamos com seriedade de causa. E eu me seguro nele como se nunca fôssemos parar de dançar e brincar. Mas, numa pausa forçada entre um ato e outro, enquanto eu me acordo consciente para diminuir o calor do meu quarto de sonhos, e aumentar a duração de meu teatro, acaba pra sempre. Eu tento, mas acaba.

Deperto, dadaísta.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A felicidade era musa

Eu descubro nos versos um jeito moderno de ver meu mundo de mim. E na prosa, talvez as marras, me punam: de novo.
Eu queria ter liberdade.
Eu queria ter queda livre.
Tenho sede de sangue nos meus morros de açúcar.
E
Me calo porque deito. Com medo. De escuro. De rua. De vento. De espaço. De sossego. De solidão. De medo. De quase um tudo que conheci nos meus olhos castanhos disformes.
Quero o medo do medo de mim. Pra fora.
Que susto. Passou.
Silêncio. Lá fora.
Sem nada.
Fica difícil ficar comigo.
Assim eu me canso e esqueço.
E guardo
O absurdo
Da tua voz que eu fiz em meu labirinto de pânico.

a maldade dos abacateiros

A grande maldade
Foi ter me feito enamorar por mim mesma
Sem nenhum perigo.
E quando caem abacates no telhado de vinil,
Eu não me lembro em que parte do mundo foi que te esqueci
E se esqueci foi remorso da vida
De outros carrascos
Em outros barrancos
Onde vivem e crescem árvores nuas
Sem pena nem medo sem viaduto nem chá
Sem São Paulo e parentes
sem vida minha antiga
não posso nunca mais te deixar sozinho.

Que você se joga junto
e eu caio de pé
quebro os joelhos
e morro vazia.

Volta.
E deita comigo.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

E agora

E agora Josefina?

A verdade acabou,
o sonhou findou.
a cama molhada, que pena do gozo
O olho espichou
prum outro quarto de pele
Você se esqueceu
ou será que inventou?




quarta-feira, 8 de abril de 2015

Quarta-feira de Culpas

Era tal a quarta-feira de janeiro a escolhida pra varrer de si o peso, da mágoa. Quarta-feira de consciência branca. Que se afoguem as culpas, que escolha teve o moço se não a de se livrar dos vícios. Mas ó, pequenino, se esqueça de tudo, se encontre com ela, faz de seu amor caridade, de seu afago, pena. Ela rasteja, mendiga pesares, alimenta-se de seus olhares de ânsia, duvida de seu próprio cuidado, quer é ser recusada. Precisas de qualquer outra coisa além de um afeto cego? Infantilidade pura, seu desprezo é sua fissura. Ela quer seus contos de fada, sua moral estragada, sua estupidez ensaiada. Cansou dos suplícios, viciou-se nos cortes nas taças quebradas, nos queijos e vinhos, que mais se quer além de luxúria, sumiço. Não quer um par, quer todos. Todos os pecados, todos os malditos, todos os fugazes, todas as tentativas pequenas. Tudo o que for infundado. Se tiver fundamento, corra. Ela logo lhe toma o orgulho e lhe fere com as unhas cobertas de nada.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

HOJE

Hoje eu acordei com uma paulada na cabeça. Um soluço na garganta: tinha uma mulher presa em algum lugar, muito triste.
Hoje eu tive forças para levantar pra tentar rasgar o grito daquela mulher de um jeito que não ferisse as aves, nem as outras pessoas.
Quando a água caiu sobre mim, hoje, no banho, eu desafoguei os suspiros daquela mulher embalados com o vento que quebrava a minha janela, pra que não se pudesse ouvir.
Mas, hoje, não foi suficiente que os choros do banho levassem pra calma, tive que andar pra mais longe, pra escutar o que aquela mulher me dizia.
Hoje, de dentro de um ônibus, eu ignorei os olhares de gente que via, mas não via comigo aquela mulher.
Viam as pernas, a saia, viam os olhos vermelhos, o cabelo errado, viam-me hesitando mas não enxergavam as forças e os sustos daquela mulher.
Hoje eu saltei de um ônibus tropeçando em pernas e em joelhos, saí de ressalto, corri pelas pedras, alcancei as paredes, me salvei dos reflexos, mas levei comigo aquela mulher.
Hoje as saudações foram frias, as respostas vagas, como em todos os outros dias, como hoje.
Hoje eu preenchi minhas horas e me assustei com meus planos, correspondi às esperas, entrei com ressalvas.
Meus pés ficaram quentes, os olhos estavam poucos, pareci mais pálida, comi umas coisas congeladas, me deitei no sofá.
Desejei falar com amigos, pensei em dormir, deitei para treinar o alívio, mas não descia. Me esqueci daquela mulher.
Soltei comentários rotineiros, me arrisquei em outros sons, assisti a cores, ingeri poucos líquidos e me cobri pra morrer.
Mais tarde, no mesmo dia de hoje, aquela mulher me atestou como louca. Como cega. Como trôpega.
Aquela mulher, hoje, me disse coisas horríveis, me lamentou como rasa, me botou de egoísta.
Hoje, ainda, eu desisti de ser como aquela mulher e fui ser aquela outra. Que murmura, que boqueja. Aquela mulher que está deitada agora. Quieta. Vaga. Triste. Era aquela do sonho. Ela pediu ajuda, ela falou mais baixo. Ela disse "cuidado". Ela rezou "tomara". Ela alertou "espere". Ela me ouviu "errada".
Ela conferiu meu pulso e ela me contou de uma cigana. Ela fez vista grossa e ela saiu de fininho. Ela gracejou meus motivos, ela me ensinou a ser que nem ela. Ela contestou minhas preces e me disse a verdade e eu.
Aquela outra mulher, que gritava, aquela mulher continuou vendo a fumaça que ela própria fazia.
E aquela mulher mais serena, que me mostrava como se quedaba e que morria com elegância, ela me fez ir dormir de novo. Como em todos os dias. Mas foi hoje.
Hoje foi diferente. Hoje duas mulheres morreram e uma me fez feliz.
Hoje eu aprendi com uma mulher a terminar de esquecer as coisas que eu comecei hoje.
Não foi como nas outras noites, eu morri de um jeito diferente. Eu dormi sem sonhar hoje.