Carolina de Jesus

Carolina de Jesus

domingo, 1 de fevereiro de 2015

HOJE

Hoje eu acordei com uma paulada na cabeça. Um soluço na garganta: tinha uma mulher presa em algum lugar, muito triste.
Hoje eu tive forças para levantar pra tentar rasgar o grito daquela mulher de um jeito que não ferisse as aves, nem as outras pessoas.
Quando a água caiu sobre mim, hoje, no banho, eu desafoguei os suspiros daquela mulher embalados com o vento que quebrava a minha janela, pra que não se pudesse ouvir.
Mas, hoje, não foi suficiente que os choros do banho levassem pra calma, tive que andar pra mais longe, pra escutar o que aquela mulher me dizia.
Hoje, de dentro de um ônibus, eu ignorei os olhares de gente que via, mas não via comigo aquela mulher.
Viam as pernas, a saia, viam os olhos vermelhos, o cabelo errado, viam-me hesitando mas não enxergavam as forças e os sustos daquela mulher.
Hoje eu saltei de um ônibus tropeçando em pernas e em joelhos, saí de ressalto, corri pelas pedras, alcancei as paredes, me salvei dos reflexos, mas levei comigo aquela mulher.
Hoje as saudações foram frias, as respostas vagas, como em todos os outros dias, como hoje.
Hoje eu preenchi minhas horas e me assustei com meus planos, correspondi às esperas, entrei com ressalvas.
Meus pés ficaram quentes, os olhos estavam poucos, pareci mais pálida, comi umas coisas congeladas, me deitei no sofá.
Desejei falar com amigos, pensei em dormir, deitei para treinar o alívio, mas não descia. Me esqueci daquela mulher.
Soltei comentários rotineiros, me arrisquei em outros sons, assisti a cores, ingeri poucos líquidos e me cobri pra morrer.
Mais tarde, no mesmo dia de hoje, aquela mulher me atestou como louca. Como cega. Como trôpega.
Aquela mulher, hoje, me disse coisas horríveis, me lamentou como rasa, me botou de egoísta.
Hoje, ainda, eu desisti de ser como aquela mulher e fui ser aquela outra. Que murmura, que boqueja. Aquela mulher que está deitada agora. Quieta. Vaga. Triste. Era aquela do sonho. Ela pediu ajuda, ela falou mais baixo. Ela disse "cuidado". Ela rezou "tomara". Ela alertou "espere". Ela me ouviu "errada".
Ela conferiu meu pulso e ela me contou de uma cigana. Ela fez vista grossa e ela saiu de fininho. Ela gracejou meus motivos, ela me ensinou a ser que nem ela. Ela contestou minhas preces e me disse a verdade e eu.
Aquela outra mulher, que gritava, aquela mulher continuou vendo a fumaça que ela própria fazia.
E aquela mulher mais serena, que me mostrava como se quedaba e que morria com elegância, ela me fez ir dormir de novo. Como em todos os dias. Mas foi hoje.
Hoje foi diferente. Hoje duas mulheres morreram e uma me fez feliz.
Hoje eu aprendi com uma mulher a terminar de esquecer as coisas que eu comecei hoje.
Não foi como nas outras noites, eu morri de um jeito diferente. Eu dormi sem sonhar hoje.


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