Carolina de Jesus

Carolina de Jesus

domingo, 5 de outubro de 2014

Os Filhos do meu Pássaro



Se eu conseguisse morrer de saudade.
Seria na pilha de tantos cacarecos que eu juntei, de todas as infâncias que tive quando vi crianças brincando nos parques. Com as mães no telefone enquanto desenharam cidades. Com medos no congelador quando acordaram pra apagar a luz.
O meu pássaro que mora na cozinha, ele cantou sua infância outro dia. Era triste. Só me lembro da parte em que acabou.
Os filhos do meu pássaro também vão ser criança por um dia, ou dois. Vão montar uma montanha de cacarecos, vão cantar pra que ninguém ouça.
Mas com eles é diferente. O mundo encantado dos filhos do meu pássaro não é dourado como o das centenas de milhares de meninos que correm no lixo, na areia, no asfalto -- sempre no sol. Eles correm de noite,  quando precisam. Mas o tempo todo é dourado.
O mundo dos pássaros não é dourado. É azul.
Eles nunca precisam correr. E nem alcançam o chão.
Os meninos do mundo dourado, não. Eles sonham com os pássaros mas não os perseguem. Não perseguem nada de fato. Tudo os persegue.
E se os pássaros lhes trouxerem cacarecos de outras crianças, eles guardam e tomam pra si. Pra fingir que o mundo dos parques e das mães e dos telefones e dos congeladores e dos interruptores que apagam as luzes também é seu.
Os filhos do meu pássaro ainda não nasceram.
Os meninos que correm no mundo dourado ainda não dormiram.
Eu juntei uma pilha de cacarecos roubados sozinho.
Eu imagino todas as outras crianças do mundo, e meu pássaro me escuta cantando.
Meu pássaro um dia vai correr pro seu mundo azul pra ter seus filhos, e vai me deixar sozinho. E eu vou ficar parado, com o meu monte de coisas de outras crianças e vou morrer de saudade.