Carolina de Jesus

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quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Dadá

Hannah Höch


Duas meninas, amigas; e não havia memória de conhecimento.
Um avião caiu, ninguém morreu. As crianças eram guerrilheiras: salvam aos outros. (O avião que esqueceu de pousar).
Um casal e um amigo: fazedores de filmes com barba -- inclusive a mulher?
Os homens são capturados por um espírito que gosta de arte -- vive nas paredes, nos grafites, se esconde trocando de estilo.
A mulher fica.
A mulher busca o espírito de cabelos negros e compridos, cara corrompida, que suga com a boca quem lhe interessa, pra que vire sua parte e propriedade.
A mulher corre nas ruas vãs de uma quase Cuba, onde parentes a aguardam nas esquinas -- truque do vilão? saudade de memória?
Carros perfeitamente velhos carregam poeiras e passageiros -- ela finge que fala espanhol e pede um táxi, pra ser enganada pela multidão; mas táxis (bordôs) são só o que existe na cidade.
Ela procura um especialista pra resolver seu problema -- um especialista em cabelos pra achar o seu marido cabeludo, levado por uma coisa que tem mais cabelo do que alma.
O especialista não coopera -- pudera, ele não entende a coitada, só enxerga cabelos onde não tem nada. No cartaz que ele lhe mostra, vários tipos de calvície -- ela tenta guardar a memória porque do marido só restou um fio bem tênue de lembrança... e agora?
Acordo nesse momento, e agora?

Agora, eu sou uma menina casta castigada por uma voz em uma cabeça tendenciosa.  A minha. Uma voz forçosa me faz querer-me libertar por vias sexuais de um aprisionamento interno, de um opressor patriarca, de uma vida de luxo e luxúria. Um garoto permissivo, pensa com outras partes do corpo. Eu anseio, eu sinto fisicamente uma dor de querer sem ter benquisto. Eu hesito. Eu mudo.
Agora eu só vejo uma mulher que carrega no ventre um fruto de um amor global, mas ela não é ela. Ela é várias ao mesmo tempo. E muda de humor e provoca e testa aquele que não a deixa, não a perde, não a larga. Mas no fim da convivência cansativa, quando ambos chegam à hora do palco -- a verdade --, ela tem medo, foge, corre pro banheiro alegando mal-estar. Mas nesse mal-estando, no espelho mais próximo, em um momento passado num segundo, ela... sou eu. E só percebo quando eu deixo o banheiro. Tremendo de hesitação mas determinada a subir em um palco de uma arte que não domino. Eu não sei dançar.
Mas então, no final do segundo passo traçado sob os olhos críticos do mundo fora de um banheiro, eis que me surge uma mão estendida. Um homem esguio, um sorriso bondoso. Eu mergulho na leveza de segurar sua mão pronta ao meu amparo e deste instante em diante, eu sei que não vou mais cair.
E subimos neste palco de dança e eu seguro em sua mão e costas altas e eu flutuo em seus pés enquanto sinto a gravidade de estar sendo olhada por uma plateia inominável. Todos vestidos de gala como num teatro suntuoso d'uma década pequena. E eu danço olhando nos olhos do homem alto, há uma peça; encenamos "A Megera Indomada" -- tudo aquilo que um dia eu criei sem confiança se torna verdade com propriedade e balé e cenário. Chega na hora do casamento da megera. Por entre os nossos próprios sussurros sarcásticos, nos beijamos singelamente sob uma salva de palmas da plateia engomada. Um beijo terno como eu nunca vira mas não há tempo pra surpresas: a dança continua. E brincamos e rimos com a menção aos nossos erotismos enquanto nos apresentamos com seriedade de causa. E eu me seguro nele como se nunca fôssemos parar de dançar e brincar. Mas, numa pausa forçada entre um ato e outro, enquanto eu me acordo consciente para diminuir o calor do meu quarto de sonhos, e aumentar a duração de meu teatro, acaba pra sempre. Eu tento, mas acaba.

Deperto, dadaísta.

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