Carolina de Jesus

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domingo, 28 de abril de 2013

Síndrome de Poliana - parte 1



Era certo que Poliana não se encaixava no mundo ao qual pertencia. Era tão certo, que sua existência fora engolida, impiedosamente, pela -- e por causa da -- terra que a originou. E assim, imersa na terra, permeada pelas paredes de madeira grossa que a separavam do mundo que mal deixara, esqueceu-se de sua vida. Não fora culpa dela. Fora o mundo que não compreendera Poliana. E ela se deixou esquecer, ao tempo em que as flores eram sepultadas junto com seu corpo agora frio, agora calmo. Nem as lágrimas a satisfariam, se ainda pudesse estar presente para assisti-las. As lágrimas superficiais só a fariam lamentar ainda mais a sua incompreensão fatídica. Mas todos somos incompreendidos.
No mundo que não a ouvia, Poliana passava quase que despercebida. Quase. Porque sua vitalidade entusiasmada ainda servia para irritar os céticos de plantão. Para ela, as flores murchas serviam para exaltar as recém-desabrochadas, o cinza dos céus nublados era só um tom de azul opaco, as fortes chuvas faziam as secas serem benquistas e vice-versa. A cada doença, a cada nota ruim, a cada desapontamento, havia uma razão de ser, algo maior e melhor para acontecer. E na morte ela via um certo consolo, pensando que sobraria comida para quem viesse a nascer e que a saudade só encontra razão na falta.
Mas o mundo não entendia Poliana. Queria contaminar com sua palidez a alma tão pura da menina criança que não enxergava razão para chorar de dor.
Poliana gostava de botar a culpa em coisas, ao invés de em pessoas. A culpa não era das pessoas por seu pessimismo gelado, era o sol que não ficava por tempo suficiente. As estrelas eram culpadas quando alguém chorava de amor numa noite vazia. A culpa do sol poente era a que mais a inquietava.
O mundo contemporâneo diagnosticou a pureza da menina como um distúrbio. Tinham pena dela. Falava-se aos cochichos quando ela parava no meio da rua para observar o céu. Ela nunca chorava. Só ouvia. Ouvia os ruídos externos aos seus olhos plácidos.
Se tinha um efeito que lhe faltasse, era o da sinceridade. Poliana mentia. E se deixava ouvir as mentiras que os outros contavam. Mas é que a mentira era importante na composição do sonho no qual a menina vivia enterrada. Ela não mentia por maldade. Nem por arrogância ou narcisismo. Mas por proteção. Para se proteger. E também para proteger o mundo das verdades que conhecia.
 Mas o mundo era egoísta, não queria proteger Poliana.
E quando deixaram-na sozinha por uma única vez, ela estranhou. Depois, chorou. Não sentia familiaridade com a solidão. Não gostava do vazio que a forçava a pensar em si. Gostava de achar soluções para os outros com seus problemas respectivos, sempre urgentes. Ela não sentia urgência em si. Ela não se enxergava, essa era a verdade. Mas a cegueira parcial é perigosa.
Quando imersa na névoa de seu caos particular, ela não aguentou. Sucumbiu à loucura do mundo. E aquele pingo de ceticismo que morava em seu corpo, que era sempre abrandado com tanto esforço, viu sua brecha e a dominou por inteiro, corpo e ser.
"Deixa de ser boba menina", "Pare de sonhar, acorda que o mundo é esse!", "O mundo é feio", "As pessoas mentem", "Acorda", "Não tem nada de especial lá fora", "Acorda, Poliana", "Tenho pena de você...", "A sua filha tem um distúrbio...", "Por que você tá sempre sorrindo?", "Para de falar besteira...", "Cansei de ouvir essas bobagens!", "...ela não sabe discernir realidade de fantasia", "Abre os olhos e enfrenta a verdade, menina!", "Poliana, para de sonhar acordada, isso não presta pra nada!", "Larga desse caderno vai, vai fazer alguma coisa útil...", "Tá desenhando ainda??", "Eu... vou te passar alguns remédios... só pra fazer ela dormir melhor, nada pesado...", "Isso mesmo, agora já acordou? Vem trabalhar então!", "Poliana, tá tomando seus remédios?", "Acho que agora ela toma jeito...", "Não sei se ela tem jeito...", "Agora sim, sem aquele sorriso bobo o tempo todo, até parece gente!", "Poliana tem uma síndrome sabe... mas ela é medicada, tudo certo, ela obedece o que o senhor pedir, pode deixar...", "Não é nada contagioso não...", "Melhor tomar cuidado com essa menina, parece que não bate muito bem... toma tarja preta e tudo", "Tem certeza que ela dá conta do serviço? Não me parece muito sã...", "Sua filha está respondendo bem ao tratamento... Mas vamos aumentar a dose, só pra garantir", "Ela tá sempre dormindo, que que foi que tá com essa cara agora?", "Não podia ser normal não?", "Os exames são animadores, conseguimos dar um choque de realidade na menina! Muito bem Poliana", "Essa menina é meio estranha, não?", "Mas tá melhorando, era pior antes...", "Poliana, você tá bem?", "Poliana? Para de brincadeira hein...", "Ah ela tá ótima sim", "Nunca mais foi a mesma", "Os remédios funcionaram...", "Poliana, fala comigo. Poliana??", "Doutora, o que aconteceu com ela?", "Acho que ela só tá com sono, não se preocupem...", "Porque você não acorda menina?! Que coisa, me responde!", "A pressão dela caiu... mas ela vai ficar bem...", "Poliana? Me escuta?!", "Acorda menina! Acorda!", "Doutora, pelo amor de deus... minha filha...", "Poliana! Chama a emergência, rápido", "POLIANA?", "Acordou?"...

Não acordou.

Foi só uma semana mais tarde, quando passaram os efeitos da sedação, que ela voltou a respirar sozinha. Abriu os olhos. Mas já era tarde...


(Fim da parte 1).