Carolina de Jesus

Carolina de Jesus

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Uma Criatura

Uma criatura pequena que morava na grama e vivia do canto dos outros. Se alimentava da luz da noite e embrulhava desejos em folhas, para se fazerem, com o mundo, um só.
Uma noite de estrelas fez a pequena criatura se esquecer de onde pusera os embrulhos. Se separou de seus desejos e se lamentou a cada segundo percorrido. Passou a matar vagalumes para redirecionar a frustração.
Um vagalume, ela pensava, era um arauto de esperança; uma luz que sempre brilha, imperdoável, no instante mais breu de uma consciência. Inconsequente.
Um dia de luz lhe fez vislumbrar os cadáveres luminescentes de vagalumes mortos pela desesperança de uma criatura pequena e frágil. Milhares de outros bichos a seguiram incessantemente pelo rastro luminoso, criado impiedosamente por aquela pequena criatura com raiva.
Uma criatura pequena e raivosa passou a desejar que os milhares de insetos inoportunos que a sufocavam naquele instante descobrissem outro alvo, menos atento. Sem querer, reencontrou os embrulhos de desejos em uma grama aterrada de vagalumes mortos. Bichos vivos continuaram a seguir a criatura e seus embrulhos novos.

Agora os embrulhos brilhavam; tinham restos de vagalumes incrustados em seus sonhos guardados.
Agora a criatura só os perdia quando queria achá-los.























sábado, 23 de novembro de 2013

Camiseta Branca

Ei você.
De camiseta branca e cabelo molhado, você.
O que aconteceu nesses anos todos? Pra onde foi tua coragem construída, teus planos e aí?
Você quer ir embora só pra dizer que foi né.
Você imagina um futuro imaginado onde você é feliz, quando fecha os olhos.
Quando os abre, escapa voluntariamente de conseguir algo mais do que um sorriso de gratidão.
Você cresceu agora, não tem onde se esconder, não tem o quê te caiba.
Tá com medo, foge, não escreve, não mergulha, não sorri nem chora.
Perché non sa voler bene.
Escuta os conselhos de quem te fez escola.
Aqueles todos que já trilharam por você, pra te deixar mais perto da porta de entrada.
Já foi. Começou faz tempo. É você quem decide como você vai contar a sua história. Você não tem vergonha não, de dar pra trás assim... De deixar as imagens que te vem aos ouvidos fugirem assim? Ninguém vai poder ouvi-las mais tarde. Elas morrem mais tarde.
Você não tem vergonha não, de desperdiçar um minuto que seja da sua lucidez, que voa por aí, que tá fazendo falta em qual mundo que seja. Você não tem vergonha?
Tem medo de sentir, de descobrir do que gosta e o que não quer; vai e corre pra fazer tua história enquanto ainda dá tempo de ser uma história de coragem. Dá.
Os mais medrosos são sempre os que fogem. Fugas nunca são mal-interpretadas, tem sempre só um lado a se contar.
Se abre, se entrega pra sentir alguma coisa pra ver se alguma imagem bonita de se contar vem ao teu encontro. Enquanto ainda é tempo.
Você tem muito medo do dia em que tiver consciência da sua falta de consciência. Muito mesmo. Vai dar um desespero, uma vontade louca de pôr pra fora... Mas quando você começar já vai estar terminando. Não vai ter tempo de desencadear o desenvolvimento, quando for ver........... Já passou. Virou branco. E será muito tarde pra começar de novo.
Cada começo de história arde na gente. Mais do que os finais doem. Porque até lá já se renovou a esperança, ao mesmo tempo em que a descrença floresce dizendo que nunca vai se ter história tão bela quanto a última. E que só a última você vai querer abraçar pra sempre. A nova vai nascer morta sem nem ter tido chance de desabrochar. Amadurecer. Crescer. As crias mais novas precisam de mais atenção. Mas dói na gente largar o conforto daquelas velhinhas tão sabias, com marcas tão bem postas. Tão sabidas e sempre despretensiosas. Elas não ligam pra quem não as gosta e sua confiança exala esse encantamento inescrito.
Jamais.
Sempre.
Talvez.












sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Porque sim.

Eu tô com frio... Me esquenta com teu olho gelado? Teu sorriso áspero? Tua palavra cortada. Com o teu não amor.
Mas ele já me faz mais bem do que o acalanto do mundo.
Eu posso ficar sozinha.
Já faz tempo. Não preciso.
Eu me acostumo.
Mas eu quero te ter mesmo não te tendo enquanto eu ainda posso.
Daqui a pouco eu vou ali pegar o trem...
Minha passagem tá aqui ó, você não acredita... Vou te mostrar.
Mas agora eu sei. Eu não preciso provar pra você.
Se eu for embora ou não você só fica sabendo bem mais tarde. E se sente pesar, ele não tem tempo de mudar nada. Eu já talhei em pedra do tempo, escrevi em agenda de notas. Meu destino é meu e não pertence a mais ninguém. Vê se se esquece e finge que você se importa com o meu embarque.
Hoje minha vida já é minha mas ainda é sua enquanto eu te olho.
Aí você joga um pouco de zelo ali fora... Eu pego, cuido, embalo. Levo pra passear e, quando eu volto, você já vai ter parado de prestar atenção.
E eu já cansei de cantar.
E teus sussurros falam muito baixo.
E as tuas mãos são quentes.
E as tuas músicas sinceras.
E teu brilho é puro exagero.
E eu sou míope. Mas já chega. Tô cega.
Eu vou ali comprar um doce pra você... Já volto.
[...]
Demorei?
Eu te entrego o doce e você me deixa ser lá longe, tudo bem assim?
Tá aqui. Trato é trato. Pode recolher toda a tua existência aqui de dentro agora? Obrigada. Eu já vou, senão o destino atrasa.
Já fui agora.
O trem tá bem aqui, na minha frente. Tô olhando pra ele mas ele não me olha de volta. Os teus não-olhares eram tão melhores... Mas o tempo já correu. Vou subir as escadas de vapor e entregar meu bilhete e pedir pro maquinista não parar enquanto eu não chegar bem longe. Assim, dá mais trabalho pra voltar.
E a preguiça vence a coragem. É sempre assim que as coisas acontecem... Toda a minha sabedoria de suposição tá sendo engolida pelo medo de andar sozinha, sem existências de terceiros comidas pela boca sem mastigar. Pronto. Ufa, passou, entrei. É só dar o bilhete na mão do cobrador, ele tá no bolso desse meu casaco azul....
(Rasguei o bolso.)
E o que eu faço agora? Sem viagem? Não tem nem mais ninguém aqui dentro pra eu fingir que não falo sozinha. Meu monólogo nunca foi tão triste. Tão sem fim. Sem propósito nenhum. Eu quero voltar, eu quero, quero e pronto.
Por quê?, o cobrador me pergunta.
Porque tem alguém me esperando ali do outro lado, com um doce que é meu. Eu quero de volta agora.
Eu saio correndo porque meu tamanho não faz diferença. Ninguém nota.
Me devolve meu doce. Eu sinto falta dele. Agora eu tenho de novo algo pra dar em troca. E eu engulo sua existência indigesta mais uma vez. Ela é salgada.
Meus olhos ardem, se ajustando com a luz que vem de você. Meu sorriso se regula de volta no padrão normal. Meu bolso vazio ri de ironia.
Eu seguro o doce contra o peito pra ficar comigo. Meu estômago revira. Mas eu tô bem. Não sinto frio.
E por que você voltou?, você me pergunta.
Porque sim, eu te digo. E eu te pego pela mão e vou embora do jeito que eu vim.
Com um guarda-chuva, uma mala de couro e uma boneca de pano -- pendida pelo braço de estopa com um sorriso irreverente e um brilho no olhar que ninguém sabe explicar.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Epifania Moderna

Em tempos digitais, o rubor do contato inesperado ficou escanteado. Ficou lá, triste. Escondeu-se numa montoeira de coisas pra compartilhar, presenças pra confirmar, eventos pra criar. Mensagens pra visualizar e deixar de ser assim tão escondido.
E assim nasceram as trocas ferventes de olhar, através de uma tela luminosa. Sem nem saber a cor dos olhos do amor. Um dia eles vão se encontrar. E aí, saí de perto que vai dar blecaute.
Porque, nesse dia, os dois vão se reconhecer artificialmente – as fotos de perfil não mentiram, ufa. Ele vai convidar ela pra sentar, puxar a cadeira, tudo certo – ele lera tudo a respeito num blog de irmandade-masculina apelativo. E ela vai ser gentil, dizer “obrigadas” e “por favores”, nunca levantar pra ir no banheiro – regra áurea! – e mastigar de boca fechada, sem nunca trocar olhares de mais de 3 segundos ou falar sobre antigos relacionamentos. E sair como uma cigana, sem olhar pra trás – como as misteriosas damas dos filmes antigos.
Tava tudo certo, tinha estratégias boladas pra cada possível pergunta. Se ele quisesse falar sobre família, ela ia contar uma história bonita sobre seu cachorro ou sua vó, pra ele se encantar com a doçura dela. Se fosse sobre música, ela tinha estudado toda a discografia dos Rolling Stones, pra impressionar. Mas talvez ele gostasse de um papo mais cult, sobre política... “FelicianoNãoMeRepresentaEDaCopaEuAbroMão”, ela ia vibrar, satisfeita. Se ele quisesse ela também podia cantar “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, do Geraldo Vandré, pra mostrar que ela sabia de referências também. Mas só uns trechinhos, pra não desafinar. E o batom dela era vermelho e o salto era alto e a saia era curta – mas não muito, pra não assustar. E o garçom chegou e ela pediu uma água; pegou o cardápio pra olhar (mas ela já chegou sabendo que ia comer uma salada sem molho, pra não manchar). Ele pediu uma água também. E disse pra ela escolher, que ele ia comer a mesma coisa. As saladas chegaram – sem molho. A água, sem gelo. E eles ficaram comendo em silêncio.
Tomaram a água toda. Usaram o guardanapo. Colocaram os talheres arrumados em cima do prato depois que já não tinha mais nada. Ele pagou a conta. Ele segurou a porta pra ela passar. Ela hesitou na hora de se despedir – não sabia se fazia a difícil ou cedia, pra ele não perder o interesse. Eles se beijaram, bem rápido. Ele ligou no dia seguinte. E eles marcaram de se encontrar de novo. Ele conheceu a família, falou sobre futebol com o pai dela, elogiou a comida da sogra. Ela terminou a faculdade, ele comprou um anel. Atualizaram o status. Viajaram pra terras longínquas e desconhecidas (onde o 3G funcionasse, claro). Viveram um amor só deles e fizeram das paisagens bonitas, álbum de fotos. Na volta, compartilharam o álbum com os amigos. No facebook.

O amor foi ficando estreito, as declarações, mais escancaradas a cada check in. Os momentos singulares deles dois passavam cada vez mais rápido – conseguiram bater o recorde no Angry Birds antes do filme terminar. E aí, no dia dos namorados, ele pediu ela em casamento. Com champagne, flores, palmas e versos do Vinícius de Morais no restaurante. Ela se emocionou, aceitou. No dia do casamento, ele chegou primeiro, falou com os convidados. Abraçou a mãeatiaaprimaairmãamadrinhaacunhada. Chorou um pouquinho mas guardou pras fotos. Ela chegou, atrasada, de branco e de véu.
Ela tirou fotos, fez um ar de blasé, e desceu da limusine com cuidado pra não estragar o sapato alugado. De braço dado com o pai, desfilou até o altar cumprimentando todos os convidados que ela sabia que tinham trazido os melhores presentes. Olhou pra ele. Ele pra ela. E assim os declaro marido e mulher, beija e seca a lágrima e brinda cruzando as taças e ruboriza com as vivas. E ela joga o buquê e a amiga solteira pega e tudo conforme deveria ser.
E eles passam a lua de mel em Veneza ou Paris e seguem todo o programa. E eles voltam pro apartamento de aluguel que tem churrasqueira na varanda e uma vaga na garagem e ela descobre um tumor neuroendócrino. E morre. E deixa ele sentado no meio da sala do apartamento alugado com paredes cor de gelo e um quarto de visitas como escritório, pra viver o clichê sozinho.
Um dia ele vai acordar, ir pro trabalho sem tomar café e, lá pela hora do almoço, quando o chefe não estiver de plantão, tuitar que a vida é imprevisível.
Enquanto essa epifania não chega, ele vai levando sem se arrepender, lendo Clarice Lispector e tendo fé na vida, apesar de tudo.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Síndrome de Poliana - parte 2 (FINAL)

E agora, Poliana?

Pra onde foi  toda a tua poesia, teu ritmo, tua risada? Acabou?

Cansou né. É difícil. Eu já tentei ficar no teu lugar. Não deu certo. Não sou forte o bastante. No primeiro revirar de olhos eu desisti. Achei melhor ficar no meu canto mesmo. Dói ser diferente. Ninguém quer viver de dor. É por isso que a arte não dá lucro né. Arte é dor. Tua arte acabou agora, você tá tão cinza... Deitada assim nesse leito de hospital. Tão pálida, tão fria, tão distante de tudo. Nem dor você sente mais. Era bom se sentisse. Tá tão anestesiada que nada mais te prende à vida. Tô com pena de você, menina. Mas a pena é ruim, nunca é bom sentir pena.
Mas você tá com pena. Tá com pena de tudo que você viu, tudo que você ouviu. Todo o mundo que você enxergou e não contou pra ninguém. Engoliu e agora não vai mais pôr pra fora. Tudo isso vai morrer com você. E agora quando você olha pro lado e não vê sorrisos, as flores são murchas, você desiste. Tá cansada, os cartões não te bastam, as melhoras nunca foram sinceras, os desejos são gritados, são de mentira. Quando tudo o que você queria era um segredo sussurrado. Sem aparência, sem motivação social, só desejo mesmo. Podia ser de qualquer um. Só queria que alguém te quisesse bem. Com vida, não dopada. E quando você se levanta pra ir no banheiro, você fala pra enfermeira que quer ir sozinha. Ela vai te obedecer, você é louca, ela tem medo. Ela obedece. Você levanta com pressa na esperança de sentir alguma fisgada, uma cãibra que fosse, só pra ouvir teu corpo te dizendo que você ainda tava ali. Mas nada. Nenhuma dorzinha. Continua e vai até o banheiro. Abre a porta, olha em volta. Ninguém tá olhando, não se preocupa. Fecha a porta. Tranca. Ai droga, a porta não tranca. Tudo bem, não vai fazer diferença. Poliana, aproveita agora que você não se importa. Aproveita que você não tem mais vida pra ser contrariada. Aproveita, que não tem mais nada pra aproveitar. E tá acabando. Já já a dor passa. A dor pela ausência da dor. Você foi forte, já deu, agora acabou a brincadeira. Chega de brincar de criança. Ninguém gostou. Ninguém entendeu. Não era brincadeira. Ah, nem adianta mais tentar explicar, esquece... Só se camufla da tinta escura que você já conhece, fica invisível, você já aprendeu como. E não fecha os olhos. Que você vai voltar a enxergar. Olha aí pela janela do banheiro, ta aí teu amigo. O pôr do sol. Lembra? Aquele que sempre te intrigava. Você achou que não sentia mais nada, mas tá sentindo raiva agora. A culpa é do pôr do sol mesmo. Ele é lindo, eu já sei. Mas é uma beleza que acaba. Vai se esgotando e vai ficando cada vez mais bela. E quando você acha que a alegria vai durar pra sempre, ele se apaga. Some, se esconde, ele cansa também. Todo dia ele cansa.
E você também tem o direito de morrer todo dia. Faz que nem o sol.
Sobe no parapeito da janela. E olha. E sorria. E sonha. E só.
Sentiu agora o calor do sol te abandonar? Tá sentindo a escuridão que te invade junto com a tristeza da noite? O sol foi embora agora, Poliana. Não, olha, deixa ele ir, é melhor assim. Você espera, ele volta amanhã. Poliana, chora. Mas não chora demais. Eles vão te ouvir. A enfermeira vem vindo aí, é melhor você voltar pra cama, volta pro teu leito gelado, que é mais quente que a noite. Esquece do sol agora, ele já morreu por hoje.
Tem alguém batendo na porta do banheiro. Acho que agora é melhor parar. Limpa esse choro. Poliana, você já tá viva agora. Não morre junto com o sol, por favor. A porta tá abrindo. Poliana, não pula. Por favor. Você não vai achar o sol assim. A culpa não é dele. A culpa é de todo o resto. Não vai atrás de uma culpa que você não consegue alcançar. Não. Vem cá, segura a minha mão. Vem. Não, a enfermeira tá gritando, se você der mais um passo ela chama a segurança. Ela vai te segurar, você não vai conseguir fugir. E vai ficar presa pra sempre. Vão te amarrar com cordas bem mais do que físicas. Vem, que mesmo assim, nada é pra sempre. Cadê teu sorriso agora? Lembra quando nada te feria? Não vai. Não fecha os olhos não. Não sorri mais agora. Não tem graça.


Cadê você, Poliana?
Cadê teu ritmo? Teu sorriso? A poesia ainda tá aqui, porque ela não morre. Mas todo o resto foi pra terra junto com você.
Você foi atrás do sol. Mas ele voltou no dia seguinte. Eu achei que eu fosse te ver chegando com ele. Mas você foi embora de uma vez por todas. É uma pena.


Foto de Tom Barratt






POLIANA

(1913 - 27 de maio de 2013)

domingo, 28 de abril de 2013

Síndrome de Poliana - parte 1



Era certo que Poliana não se encaixava no mundo ao qual pertencia. Era tão certo, que sua existência fora engolida, impiedosamente, pela -- e por causa da -- terra que a originou. E assim, imersa na terra, permeada pelas paredes de madeira grossa que a separavam do mundo que mal deixara, esqueceu-se de sua vida. Não fora culpa dela. Fora o mundo que não compreendera Poliana. E ela se deixou esquecer, ao tempo em que as flores eram sepultadas junto com seu corpo agora frio, agora calmo. Nem as lágrimas a satisfariam, se ainda pudesse estar presente para assisti-las. As lágrimas superficiais só a fariam lamentar ainda mais a sua incompreensão fatídica. Mas todos somos incompreendidos.
No mundo que não a ouvia, Poliana passava quase que despercebida. Quase. Porque sua vitalidade entusiasmada ainda servia para irritar os céticos de plantão. Para ela, as flores murchas serviam para exaltar as recém-desabrochadas, o cinza dos céus nublados era só um tom de azul opaco, as fortes chuvas faziam as secas serem benquistas e vice-versa. A cada doença, a cada nota ruim, a cada desapontamento, havia uma razão de ser, algo maior e melhor para acontecer. E na morte ela via um certo consolo, pensando que sobraria comida para quem viesse a nascer e que a saudade só encontra razão na falta.
Mas o mundo não entendia Poliana. Queria contaminar com sua palidez a alma tão pura da menina criança que não enxergava razão para chorar de dor.
Poliana gostava de botar a culpa em coisas, ao invés de em pessoas. A culpa não era das pessoas por seu pessimismo gelado, era o sol que não ficava por tempo suficiente. As estrelas eram culpadas quando alguém chorava de amor numa noite vazia. A culpa do sol poente era a que mais a inquietava.
O mundo contemporâneo diagnosticou a pureza da menina como um distúrbio. Tinham pena dela. Falava-se aos cochichos quando ela parava no meio da rua para observar o céu. Ela nunca chorava. Só ouvia. Ouvia os ruídos externos aos seus olhos plácidos.
Se tinha um efeito que lhe faltasse, era o da sinceridade. Poliana mentia. E se deixava ouvir as mentiras que os outros contavam. Mas é que a mentira era importante na composição do sonho no qual a menina vivia enterrada. Ela não mentia por maldade. Nem por arrogância ou narcisismo. Mas por proteção. Para se proteger. E também para proteger o mundo das verdades que conhecia.
 Mas o mundo era egoísta, não queria proteger Poliana.
E quando deixaram-na sozinha por uma única vez, ela estranhou. Depois, chorou. Não sentia familiaridade com a solidão. Não gostava do vazio que a forçava a pensar em si. Gostava de achar soluções para os outros com seus problemas respectivos, sempre urgentes. Ela não sentia urgência em si. Ela não se enxergava, essa era a verdade. Mas a cegueira parcial é perigosa.
Quando imersa na névoa de seu caos particular, ela não aguentou. Sucumbiu à loucura do mundo. E aquele pingo de ceticismo que morava em seu corpo, que era sempre abrandado com tanto esforço, viu sua brecha e a dominou por inteiro, corpo e ser.
"Deixa de ser boba menina", "Pare de sonhar, acorda que o mundo é esse!", "O mundo é feio", "As pessoas mentem", "Acorda", "Não tem nada de especial lá fora", "Acorda, Poliana", "Tenho pena de você...", "A sua filha tem um distúrbio...", "Por que você tá sempre sorrindo?", "Para de falar besteira...", "Cansei de ouvir essas bobagens!", "...ela não sabe discernir realidade de fantasia", "Abre os olhos e enfrenta a verdade, menina!", "Poliana, para de sonhar acordada, isso não presta pra nada!", "Larga desse caderno vai, vai fazer alguma coisa útil...", "Tá desenhando ainda??", "Eu... vou te passar alguns remédios... só pra fazer ela dormir melhor, nada pesado...", "Isso mesmo, agora já acordou? Vem trabalhar então!", "Poliana, tá tomando seus remédios?", "Acho que agora ela toma jeito...", "Não sei se ela tem jeito...", "Agora sim, sem aquele sorriso bobo o tempo todo, até parece gente!", "Poliana tem uma síndrome sabe... mas ela é medicada, tudo certo, ela obedece o que o senhor pedir, pode deixar...", "Não é nada contagioso não...", "Melhor tomar cuidado com essa menina, parece que não bate muito bem... toma tarja preta e tudo", "Tem certeza que ela dá conta do serviço? Não me parece muito sã...", "Sua filha está respondendo bem ao tratamento... Mas vamos aumentar a dose, só pra garantir", "Ela tá sempre dormindo, que que foi que tá com essa cara agora?", "Não podia ser normal não?", "Os exames são animadores, conseguimos dar um choque de realidade na menina! Muito bem Poliana", "Essa menina é meio estranha, não?", "Mas tá melhorando, era pior antes...", "Poliana, você tá bem?", "Poliana? Para de brincadeira hein...", "Ah ela tá ótima sim", "Nunca mais foi a mesma", "Os remédios funcionaram...", "Poliana, fala comigo. Poliana??", "Doutora, o que aconteceu com ela?", "Acho que ela só tá com sono, não se preocupem...", "Porque você não acorda menina?! Que coisa, me responde!", "A pressão dela caiu... mas ela vai ficar bem...", "Poliana? Me escuta?!", "Acorda menina! Acorda!", "Doutora, pelo amor de deus... minha filha...", "Poliana! Chama a emergência, rápido", "POLIANA?", "Acordou?"...

Não acordou.

Foi só uma semana mais tarde, quando passaram os efeitos da sedação, que ela voltou a respirar sozinha. Abriu os olhos. Mas já era tarde...


(Fim da parte 1).