Carolina de Jesus

Carolina de Jesus

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Epifania Moderna

Em tempos digitais, o rubor do contato inesperado ficou escanteado. Ficou lá, triste. Escondeu-se numa montoeira de coisas pra compartilhar, presenças pra confirmar, eventos pra criar. Mensagens pra visualizar e deixar de ser assim tão escondido.
E assim nasceram as trocas ferventes de olhar, através de uma tela luminosa. Sem nem saber a cor dos olhos do amor. Um dia eles vão se encontrar. E aí, saí de perto que vai dar blecaute.
Porque, nesse dia, os dois vão se reconhecer artificialmente – as fotos de perfil não mentiram, ufa. Ele vai convidar ela pra sentar, puxar a cadeira, tudo certo – ele lera tudo a respeito num blog de irmandade-masculina apelativo. E ela vai ser gentil, dizer “obrigadas” e “por favores”, nunca levantar pra ir no banheiro – regra áurea! – e mastigar de boca fechada, sem nunca trocar olhares de mais de 3 segundos ou falar sobre antigos relacionamentos. E sair como uma cigana, sem olhar pra trás – como as misteriosas damas dos filmes antigos.
Tava tudo certo, tinha estratégias boladas pra cada possível pergunta. Se ele quisesse falar sobre família, ela ia contar uma história bonita sobre seu cachorro ou sua vó, pra ele se encantar com a doçura dela. Se fosse sobre música, ela tinha estudado toda a discografia dos Rolling Stones, pra impressionar. Mas talvez ele gostasse de um papo mais cult, sobre política... “FelicianoNãoMeRepresentaEDaCopaEuAbroMão”, ela ia vibrar, satisfeita. Se ele quisesse ela também podia cantar “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, do Geraldo Vandré, pra mostrar que ela sabia de referências também. Mas só uns trechinhos, pra não desafinar. E o batom dela era vermelho e o salto era alto e a saia era curta – mas não muito, pra não assustar. E o garçom chegou e ela pediu uma água; pegou o cardápio pra olhar (mas ela já chegou sabendo que ia comer uma salada sem molho, pra não manchar). Ele pediu uma água também. E disse pra ela escolher, que ele ia comer a mesma coisa. As saladas chegaram – sem molho. A água, sem gelo. E eles ficaram comendo em silêncio.
Tomaram a água toda. Usaram o guardanapo. Colocaram os talheres arrumados em cima do prato depois que já não tinha mais nada. Ele pagou a conta. Ele segurou a porta pra ela passar. Ela hesitou na hora de se despedir – não sabia se fazia a difícil ou cedia, pra ele não perder o interesse. Eles se beijaram, bem rápido. Ele ligou no dia seguinte. E eles marcaram de se encontrar de novo. Ele conheceu a família, falou sobre futebol com o pai dela, elogiou a comida da sogra. Ela terminou a faculdade, ele comprou um anel. Atualizaram o status. Viajaram pra terras longínquas e desconhecidas (onde o 3G funcionasse, claro). Viveram um amor só deles e fizeram das paisagens bonitas, álbum de fotos. Na volta, compartilharam o álbum com os amigos. No facebook.

O amor foi ficando estreito, as declarações, mais escancaradas a cada check in. Os momentos singulares deles dois passavam cada vez mais rápido – conseguiram bater o recorde no Angry Birds antes do filme terminar. E aí, no dia dos namorados, ele pediu ela em casamento. Com champagne, flores, palmas e versos do Vinícius de Morais no restaurante. Ela se emocionou, aceitou. No dia do casamento, ele chegou primeiro, falou com os convidados. Abraçou a mãeatiaaprimaairmãamadrinhaacunhada. Chorou um pouquinho mas guardou pras fotos. Ela chegou, atrasada, de branco e de véu.
Ela tirou fotos, fez um ar de blasé, e desceu da limusine com cuidado pra não estragar o sapato alugado. De braço dado com o pai, desfilou até o altar cumprimentando todos os convidados que ela sabia que tinham trazido os melhores presentes. Olhou pra ele. Ele pra ela. E assim os declaro marido e mulher, beija e seca a lágrima e brinda cruzando as taças e ruboriza com as vivas. E ela joga o buquê e a amiga solteira pega e tudo conforme deveria ser.
E eles passam a lua de mel em Veneza ou Paris e seguem todo o programa. E eles voltam pro apartamento de aluguel que tem churrasqueira na varanda e uma vaga na garagem e ela descobre um tumor neuroendócrino. E morre. E deixa ele sentado no meio da sala do apartamento alugado com paredes cor de gelo e um quarto de visitas como escritório, pra viver o clichê sozinho.
Um dia ele vai acordar, ir pro trabalho sem tomar café e, lá pela hora do almoço, quando o chefe não estiver de plantão, tuitar que a vida é imprevisível.
Enquanto essa epifania não chega, ele vai levando sem se arrepender, lendo Clarice Lispector e tendo fé na vida, apesar de tudo.