Carolina de Jesus

Carolina de Jesus

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Síndrome de Poliana - parte 2 (FINAL)

E agora, Poliana?

Pra onde foi  toda a tua poesia, teu ritmo, tua risada? Acabou?

Cansou né. É difícil. Eu já tentei ficar no teu lugar. Não deu certo. Não sou forte o bastante. No primeiro revirar de olhos eu desisti. Achei melhor ficar no meu canto mesmo. Dói ser diferente. Ninguém quer viver de dor. É por isso que a arte não dá lucro né. Arte é dor. Tua arte acabou agora, você tá tão cinza... Deitada assim nesse leito de hospital. Tão pálida, tão fria, tão distante de tudo. Nem dor você sente mais. Era bom se sentisse. Tá tão anestesiada que nada mais te prende à vida. Tô com pena de você, menina. Mas a pena é ruim, nunca é bom sentir pena.
Mas você tá com pena. Tá com pena de tudo que você viu, tudo que você ouviu. Todo o mundo que você enxergou e não contou pra ninguém. Engoliu e agora não vai mais pôr pra fora. Tudo isso vai morrer com você. E agora quando você olha pro lado e não vê sorrisos, as flores são murchas, você desiste. Tá cansada, os cartões não te bastam, as melhoras nunca foram sinceras, os desejos são gritados, são de mentira. Quando tudo o que você queria era um segredo sussurrado. Sem aparência, sem motivação social, só desejo mesmo. Podia ser de qualquer um. Só queria que alguém te quisesse bem. Com vida, não dopada. E quando você se levanta pra ir no banheiro, você fala pra enfermeira que quer ir sozinha. Ela vai te obedecer, você é louca, ela tem medo. Ela obedece. Você levanta com pressa na esperança de sentir alguma fisgada, uma cãibra que fosse, só pra ouvir teu corpo te dizendo que você ainda tava ali. Mas nada. Nenhuma dorzinha. Continua e vai até o banheiro. Abre a porta, olha em volta. Ninguém tá olhando, não se preocupa. Fecha a porta. Tranca. Ai droga, a porta não tranca. Tudo bem, não vai fazer diferença. Poliana, aproveita agora que você não se importa. Aproveita que você não tem mais vida pra ser contrariada. Aproveita, que não tem mais nada pra aproveitar. E tá acabando. Já já a dor passa. A dor pela ausência da dor. Você foi forte, já deu, agora acabou a brincadeira. Chega de brincar de criança. Ninguém gostou. Ninguém entendeu. Não era brincadeira. Ah, nem adianta mais tentar explicar, esquece... Só se camufla da tinta escura que você já conhece, fica invisível, você já aprendeu como. E não fecha os olhos. Que você vai voltar a enxergar. Olha aí pela janela do banheiro, ta aí teu amigo. O pôr do sol. Lembra? Aquele que sempre te intrigava. Você achou que não sentia mais nada, mas tá sentindo raiva agora. A culpa é do pôr do sol mesmo. Ele é lindo, eu já sei. Mas é uma beleza que acaba. Vai se esgotando e vai ficando cada vez mais bela. E quando você acha que a alegria vai durar pra sempre, ele se apaga. Some, se esconde, ele cansa também. Todo dia ele cansa.
E você também tem o direito de morrer todo dia. Faz que nem o sol.
Sobe no parapeito da janela. E olha. E sorria. E sonha. E só.
Sentiu agora o calor do sol te abandonar? Tá sentindo a escuridão que te invade junto com a tristeza da noite? O sol foi embora agora, Poliana. Não, olha, deixa ele ir, é melhor assim. Você espera, ele volta amanhã. Poliana, chora. Mas não chora demais. Eles vão te ouvir. A enfermeira vem vindo aí, é melhor você voltar pra cama, volta pro teu leito gelado, que é mais quente que a noite. Esquece do sol agora, ele já morreu por hoje.
Tem alguém batendo na porta do banheiro. Acho que agora é melhor parar. Limpa esse choro. Poliana, você já tá viva agora. Não morre junto com o sol, por favor. A porta tá abrindo. Poliana, não pula. Por favor. Você não vai achar o sol assim. A culpa não é dele. A culpa é de todo o resto. Não vai atrás de uma culpa que você não consegue alcançar. Não. Vem cá, segura a minha mão. Vem. Não, a enfermeira tá gritando, se você der mais um passo ela chama a segurança. Ela vai te segurar, você não vai conseguir fugir. E vai ficar presa pra sempre. Vão te amarrar com cordas bem mais do que físicas. Vem, que mesmo assim, nada é pra sempre. Cadê teu sorriso agora? Lembra quando nada te feria? Não vai. Não fecha os olhos não. Não sorri mais agora. Não tem graça.


Cadê você, Poliana?
Cadê teu ritmo? Teu sorriso? A poesia ainda tá aqui, porque ela não morre. Mas todo o resto foi pra terra junto com você.
Você foi atrás do sol. Mas ele voltou no dia seguinte. Eu achei que eu fosse te ver chegando com ele. Mas você foi embora de uma vez por todas. É uma pena.


Foto de Tom Barratt






POLIANA

(1913 - 27 de maio de 2013)

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