Em
tempos digitais, o rubor do contato inesperado ficou escanteado.
Ficou lá, triste. Escondeu-se numa montoeira de coisas pra
compartilhar, presenças pra confirmar, eventos pra criar. Mensagens
pra visualizar e deixar de ser assim tão escondido.
E
assim nasceram as trocas ferventes de olhar, através de uma tela
luminosa. Sem nem saber a cor dos olhos do amor. Um dia eles vão se
encontrar. E aí, saí de perto que vai dar blecaute.
Porque,
nesse dia, os dois vão se reconhecer artificialmente – as fotos de
perfil não mentiram, ufa. Ele vai convidar ela pra sentar, puxar a
cadeira, tudo certo – ele lera tudo a respeito num blog de
irmandade-masculina apelativo. E ela vai ser gentil, dizer
“obrigadas” e “por favores”, nunca levantar pra ir no
banheiro – regra áurea! – e mastigar de boca fechada, sem nunca
trocar olhares de mais de 3 segundos ou falar sobre antigos
relacionamentos. E sair como uma cigana, sem olhar pra trás – como
as misteriosas damas dos filmes antigos.
Tava tudo certo, tinha
estratégias boladas pra cada possível pergunta. Se ele quisesse
falar sobre família, ela ia contar uma história bonita sobre seu
cachorro ou sua vó, pra ele se encantar com a doçura dela. Se fosse
sobre música, ela tinha estudado toda a discografia dos Rolling
Stones, pra impressionar. Mas talvez ele gostasse de
um papo mais cult, sobre política...
“FelicianoNãoMeRepresentaEDaCopaEuAbroMão”, ela ia vibrar,
satisfeita. Se ele quisesse ela também podia cantar “Pra Não
Dizer Que Não Falei das Flores”, do Geraldo Vandré, pra mostrar
que ela sabia de referências também. Mas só uns trechinhos, pra não
desafinar. E o batom dela era vermelho e o salto era alto e a saia
era curta – mas não muito, pra não assustar. E o garçom chegou e
ela pediu uma água; pegou o cardápio pra olhar (mas ela já chegou
sabendo que ia comer uma salada sem molho, pra não manchar). Ele
pediu uma água também. E disse pra ela escolher, que ele ia comer a
mesma coisa. As saladas chegaram – sem molho. A água, sem gelo. E
eles ficaram comendo em silêncio.
Tomaram
a água toda. Usaram o guardanapo. Colocaram os talheres arrumados em
cima do prato depois que já não tinha mais nada. Ele pagou a conta.
Ele segurou a porta pra ela passar. Ela hesitou na hora de se
despedir – não sabia se fazia a difícil ou cedia, pra ele não
perder o interesse. Eles se beijaram, bem rápido. Ele ligou no dia
seguinte. E eles marcaram de se encontrar de novo. Ele conheceu a
família, falou sobre futebol com o pai dela, elogiou a comida
da sogra. Ela terminou a faculdade, ele comprou um anel. Atualizaram
o status. Viajaram pra terras longínquas e desconhecidas (onde o 3G
funcionasse, claro). Viveram um amor só deles e fizeram das
paisagens bonitas, álbum de fotos. Na volta, compartilharam o álbum
com os amigos. No facebook.
O
amor foi ficando estreito, as declarações, mais escancaradas a cada
check in. Os momentos singulares deles dois passavam cada vez mais
rápido – conseguiram bater o recorde no Angry Birds antes do filme
terminar. E aí, no dia dos namorados, ele pediu ela em casamento.
Com champagne, flores, palmas e versos do Vinícius de Morais no
restaurante. Ela se emocionou, aceitou. No dia do casamento, ele
chegou primeiro, falou com os convidados. Abraçou a
mãeatiaaprimaairmãamadrinhaacunhada. Chorou um pouquinho mas
guardou pras fotos. Ela chegou, atrasada, de branco e de véu.
Ela tirou fotos, fez um ar de blasé, e desceu da limusine com cuidado pra não estragar o sapato alugado. De braço dado com o pai, desfilou até o altar cumprimentando todos os convidados que ela sabia que tinham trazido os melhores presentes. Olhou pra ele. Ele pra ela. E assim os declaro marido e mulher, beija e seca a lágrima e brinda cruzando as taças e ruboriza com as vivas. E ela joga o buquê e a amiga solteira pega e tudo conforme deveria ser.
E eles passam a lua de mel em Veneza ou Paris e seguem todo o programa. E eles voltam pro apartamento de aluguel que tem churrasqueira na varanda e uma vaga na garagem e ela descobre um tumor neuroendócrino. E morre. E deixa ele sentado no meio da sala do apartamento alugado com paredes cor de gelo e um quarto de visitas como escritório, pra viver o clichê sozinho.
Um dia ele vai acordar, ir pro trabalho sem tomar café e, lá pela hora do almoço, quando o chefe não estiver de plantão, tuitar que a vida é imprevisível.
Enquanto essa epifania não chega, ele vai levando sem se arrepender, lendo Clarice Lispector e tendo fé na vida, apesar de tudo.
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