Carolina de Jesus

Carolina de Jesus

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Porque sim.

Eu tô com frio... Me esquenta com teu olho gelado? Teu sorriso áspero? Tua palavra cortada. Com o teu não amor.
Mas ele já me faz mais bem do que o acalanto do mundo.
Eu posso ficar sozinha.
Já faz tempo. Não preciso.
Eu me acostumo.
Mas eu quero te ter mesmo não te tendo enquanto eu ainda posso.
Daqui a pouco eu vou ali pegar o trem...
Minha passagem tá aqui ó, você não acredita... Vou te mostrar.
Mas agora eu sei. Eu não preciso provar pra você.
Se eu for embora ou não você só fica sabendo bem mais tarde. E se sente pesar, ele não tem tempo de mudar nada. Eu já talhei em pedra do tempo, escrevi em agenda de notas. Meu destino é meu e não pertence a mais ninguém. Vê se se esquece e finge que você se importa com o meu embarque.
Hoje minha vida já é minha mas ainda é sua enquanto eu te olho.
Aí você joga um pouco de zelo ali fora... Eu pego, cuido, embalo. Levo pra passear e, quando eu volto, você já vai ter parado de prestar atenção.
E eu já cansei de cantar.
E teus sussurros falam muito baixo.
E as tuas mãos são quentes.
E as tuas músicas sinceras.
E teu brilho é puro exagero.
E eu sou míope. Mas já chega. Tô cega.
Eu vou ali comprar um doce pra você... Já volto.
[...]
Demorei?
Eu te entrego o doce e você me deixa ser lá longe, tudo bem assim?
Tá aqui. Trato é trato. Pode recolher toda a tua existência aqui de dentro agora? Obrigada. Eu já vou, senão o destino atrasa.
Já fui agora.
O trem tá bem aqui, na minha frente. Tô olhando pra ele mas ele não me olha de volta. Os teus não-olhares eram tão melhores... Mas o tempo já correu. Vou subir as escadas de vapor e entregar meu bilhete e pedir pro maquinista não parar enquanto eu não chegar bem longe. Assim, dá mais trabalho pra voltar.
E a preguiça vence a coragem. É sempre assim que as coisas acontecem... Toda a minha sabedoria de suposição tá sendo engolida pelo medo de andar sozinha, sem existências de terceiros comidas pela boca sem mastigar. Pronto. Ufa, passou, entrei. É só dar o bilhete na mão do cobrador, ele tá no bolso desse meu casaco azul....
(Rasguei o bolso.)
E o que eu faço agora? Sem viagem? Não tem nem mais ninguém aqui dentro pra eu fingir que não falo sozinha. Meu monólogo nunca foi tão triste. Tão sem fim. Sem propósito nenhum. Eu quero voltar, eu quero, quero e pronto.
Por quê?, o cobrador me pergunta.
Porque tem alguém me esperando ali do outro lado, com um doce que é meu. Eu quero de volta agora.
Eu saio correndo porque meu tamanho não faz diferença. Ninguém nota.
Me devolve meu doce. Eu sinto falta dele. Agora eu tenho de novo algo pra dar em troca. E eu engulo sua existência indigesta mais uma vez. Ela é salgada.
Meus olhos ardem, se ajustando com a luz que vem de você. Meu sorriso se regula de volta no padrão normal. Meu bolso vazio ri de ironia.
Eu seguro o doce contra o peito pra ficar comigo. Meu estômago revira. Mas eu tô bem. Não sinto frio.
E por que você voltou?, você me pergunta.
Porque sim, eu te digo. E eu te pego pela mão e vou embora do jeito que eu vim.
Com um guarda-chuva, uma mala de couro e uma boneca de pano -- pendida pelo braço de estopa com um sorriso irreverente e um brilho no olhar que ninguém sabe explicar.

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