Carolina de Jesus

Carolina de Jesus

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O conto de Natal

Chega o tempo em que as frases demandam ser terminadas. Não suportam mais reticências. Indefinição é coisa pra julho, setembro. Agora, não é tempo. Já é tarde em dezembro.
Quando a criança solta das mãos precisas da mãe desatenta para se deslumbrar com um brilho que não lhe pertence, eu percebo. Como alguém disse uma vez que, ou se filma a sopa, ou se come a sopa, eu tenho a realização permanente de que não posso participar de um conto de Natal, se sou eu mesma a contá-lo. De outra maneira não seria conto. Seria ser.
Por isso, enquanto eu me prometo me esquecer da palavra "eu" como narradora-observadora sem interferências internas da órbita que me habita, a criança rouba com os olhos um feitiço forjado para lhe fazer inocente.
Já não é mais criança agora, nem filha, nem parte de um todo. Ela é uma só, de pernas soltas para um infinito limitado que, por vezes, cabe num abraço, num sino, ou num gorro. Todas as estratégias mercantis são rasas agora, perto de um olhar ausente a tudo. Tudo que não seja aquilo que quer enxergar.
E quando renegam sua ingenuidade, ela refuta. Faz força pra continuar de olhos fechados. Ela gosta do que pensa que vê. Mas não vê.
E uma contadora cansada de nadas e poucos e simplesmentes, e uma mãe que ofusca com flashes o espetáculo da ingênua criatura capturada pelo alienado criador, já não pertencem mais ao mesmo mundo de uma criança encantada.
Os passos e riscos calculados inevitavelmente se tropeçam uns nos outros no desejo do reparo da própria consciência corrompida de uma pequena criança, já toda marcada. Queríamos ser todos a mesma criança -- a crise da consciência, o adulto ineficaz, a matriarca bamba... a própria menina queria ser aquela criança. Perdendo a meninice inevitavelmente de encontro com a vida.
Queríamos ser mas, inexoravelmente: não somos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário