Carolina de Jesus

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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A Sujeira

(Mendigo Brigando com Cachorros, de José Lutzenberger)

"Sabe, a vida é engraçada... Eu nunca tive amigos, minha mãe me largou -- meu pai já tinha largado ela -- e ninguém nunca quis me procurar. Agora eu tenho você. E escuta aqui, eu trocaria todas as pessoas que eu já conheci por você" -- ele andava falando e gesticulando, não se importando com os olhares tortos dos passantes de moral insuportável. "O que é que esse louco está falando sozinho de novo?". "Ai, eu não aguento mais! Quantas vezes eu já não pedi pra ele não voltar a aparecer em frente à minha loja... Ele assusta todos os clientes! Eu já tive que chamar a polícia semana passada...". "A polícia? O que aconteceu?!". "Ah, ele ficava incomodando os clientes. Começou a dançar sozinho na praça -- sem nenhuma música, onde já se viu!". "Que absurdo! Você fez muito bem, eu teria feito a mesma coisa". Enquanto os comerciantes se preocupavam com suas vendas, as bocas salivando com os gosto dos R$s que eles cobiçavam, o homem louco seguia sem nenhuma preocupação, a não ser manter a conversa com o seu novo amigo.
Os pedestres cujo rosto não importava não cogitavam prestar atenção no morador de rua; se concentravam em "desviar o olhar" -- "Não olhe filha, senão ele vai achar que você quer conversa com ele... Já não viu no jornal quantos morrem desta forma?". Mas bastava uma fração de segundo do olhar de uma pessoa mais atenta ou mais honesta para se perceber que o homem louco não falava sozinho -- se louco, que fosse por outros motivos...
Seu amigo, um canídeo humilde com apenas três patas funcionais e menos dentes do que gostaria, insistia em acompanhar o mendigo louco. Ele era um bom amigo -- lhe fazia companhia, não o chutava ou o espantava com ojeriza, deixava-o se acomodar no seu papelão nas noites mais frias, dividia tudo o que julgava como "comida" em partes iguais... Foi mais gentil do que qualquer humano jamais fora.
Numa de suas andanças, o mendigo decidira entrar em um mercado para negociar um pacote de bolacha -- ele sempre morrera de curiosidade para saber o gosto que tinha. Ele foi expulso aos chutes de lá, e acabou parando ao lado de uma caçamba de lixo, com sangue escorrendo do nariz nocauteado pelo segurança símio do estabelecimento. O cachorro, após alguns minutos de diagnóstico, colocou um cobertor sob a cabeça do amigo, que gemia de frio e de dor. E assim eles passaram a noite. No dia seguinte, o homem louco estava um pouco melhor, e um pouco mais louco. Mas nada que o afetasse realmente.
E assim foi por muito tempo. Um dia igual ao outro, só não se tornando rotineiro por causa das oscilações do senso do homem. E poderia continuar assim -- os olhares de reprovação das pessoas que só faziam invejar a vida livre de repetições e burocracias do louco, os chutes policialescos, a incerteza em relação à comida -- não fosse a irreparável mania do destino de debochar da vida. E daqueles que vivem.
Chegado o dia em que o destino riria por último, os vendedores não reclamaram. Os passantes, não julgaram. O cachorro não seguiu seu amigo -- e nem latiu. Não havia mais alguém de quem reclamar, alguém a quem julgar. Não havia ninguém para seguir. E o cachorro simplesmente se prostrou ao lado do cadáver do mendigo sujo. O mendigo que fazia barulho. O mendigo que falava com alguém falando sozinho. O mendigo que se jogou na frente de um ônibus para salvar seu amigo que não o entenderia. Morreu o mendigo. Ficou a sujeira.

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