Carolina de Jesus

Carolina de Jesus

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Utopia

A brisa soprava em seu rosto e ele podia sentir o cheiro da grama cortada que beirava as calçadas. Seus sapatos, cuidadosamente engraxados, faziam um ruído engraçado quando encontravam os paralelepípedos. Viu um homem andando do outro lado da calçada, trajando exatamente as mesmas roupas que ele. Camisa branca engomada, calças cáqui, sapatos pretos. Sorriu pra ele e lhe pediu para que desse uma informação. O estranho atravessou a calçada e sorriu, revelando dentes muito brancos, frutos de um branqueamento bem recente, observou o homem, preocupado se haveria a necessidade de marcar um horário para fazer um também. "Por favor, à que horas começa a Reunião?". O estranho respondeu sem pestanejar: "Às duas e trinta. Ah, e a propósito, que belo penteado você tem aí, hein...". O homem sorriu, passando a mão por seus fios negros e ainda um pouco molhados com o gel que tinha comprado naquela manhã. "Obrigado, até as duas e trinta". O estranho acenou com a cabeça e seguiu em frente. O homem o observou partindo, de longe, e se alegrou com a lembrança do som das palavras do estranho a respeito de seu cabelo. Era verdade, o cabelo do estranho deixava a desejar. Tinham vários fios fora do lugar. Talvez devesse lhe dar a marca do novo produto que comprou quando se encontrassem na reunião. Se bem que, com tantas pessoas vestidas da mesma maneira, seria difícil de encontrá-lo. Desistiu da ideia. Continuou a caminhada, até o Centro de Convenções, onde iria ocorrer a Reunião da Cidade. Chegaria um pouco cedo demais, mas um homem como ele não deveria correr o risco de se atrasar. Mas talvez fosse o caso de parar na banca de revistas antes, para chegar bem informado. Comprou o jornal diário. Logo na primeira página viu uma foto assustadora: um homenzinho cabeludo, todo sujo, com a barba por fazer, vestindo trapos. Embaixo da foto, a manchete: "Criatura fétida e mal vestida garante que vivia em Utopia". O homem não pôde deixar de ficar boquiaberto. Bradou para o vendedor da banquinha: "Como pode ser isso?!". O vendedor se assustou com o grito do homem e , após se recuperar do choque - afinal não era comum os habitantes daquela cidade gritarem daquele jeito - respondeu: " Esse é o motivo da reunião extraordinária. Ele não deveria ser revelado até a hora da Reunião, mas parece que uma fonte misteriosa acabou o entregando ao jornal...Esses jornalistas não perdem uma oportunidade!". O homem deixou o vendedor falando sozinho e continuou caminhando, agora com mais rapidez. Ele não conseguia abstrair aquela imagem absurda de sua cabeça. Um homem vestindo trapos, onde já se viu!
Chegou ao centro de Convenções e olhou em volta. Burburinhos em todos os cantos do grande salão reluzente. Pessoas bem vestidas andavam pra lá e pra cá, ao redor de algo que parecia ser uma jaula. O que estava dentro da jaula não era possível saber, pois esta estava coberta por um pano preto. O homem se sentou em uma cadeira vazia, o mais próximo possível da "jaula". Mal podia se segurar de tanta ansiedade. Olhou para o lado e viu que os outros compartilhavam de sua impaciência. O prefeito de Utopia subiu no tablado, que se estendia de uma à outra extremidade do salão. Pegou o microfone, esperou até que todos se acomodassem e começou a falar: "Senhoras e senhores, habitantes de Utopia, eu gostaria de comunicá-los do motivo por estarem aqui nessa Reunião Extraordinária. Acredito que muitos de vocês já sabem que, na madrugada de ontem, um ser moribundo foi encontrado nos arredores de nossa cidade em estado deplorável...E ainda: afirma já ter tido um dia o privilégio de ter pertencido à Utopia!". "Isso é um ultraje!" se exaltou alguém na plateia. Os seguranças rapidamente foram até o homem, para garantir que ele se sentasse e não se pronunciasse mais. O homem, assustado, obedeceu. O prefeito sorriu com a manifestação e disse em seguida: "Por favor, peço que não se manifestem. A situação está sob controle. Quero que vocês vejam o falsário, mas antes gostaria de reafirmar algumas coisas...Vou ler agora o juramento da Cidade de Utopia e eu gostaria que todos erguessem as suas mãos direitas, as colocassem por sobre o peito e repetissem: Como cidadão de Utopia, benefício concedido à poucos e conquistado com muito suor através de demonstrações de honra e coragem por nosso povo, juntamente com um valor pago para garantir a manutenção de nossa tão amada cidade, eu juro honrar esse juramento, como prova de minha integridade, enquanto viver. Enquanto eu respirar os ares puros e pisar na grama verde dessa cidade, vou cumprir esse juramento. Enquanto andar pelos ladrilhos e beber na fonte de Utopia, vou respeitar esse acordo. E, se um dia, eu deixar de merecer este benefício, eu não vou pisar nesse chão. Chão esse regido por um mestre em sabedoria, coragem e bondade de cor nobre e origem digna.". Assim que o prefeito terminou o juramento todos começaram a se remexer nas cadeiras, aguardando a revelação da tal criatura que estava sob o pano, dentro da jaula. "E agora, sem mais delongas, o falsário..." anunciou o prefeito. Os panos caíram. As pessoas gritavam diante da figura mal-encarada e suja. Os burbúrios se reiniciaram. As pessoas estavam alvoroçadas. Alguns colocavam as mãos no rosto, tentando não olhar. Outros, não disfarçavam o espanto e franziam a testa de repugnação. Algumas pessoas, mais eufóricas, não aguentaram e saíram correndo. Já o homem-de-belo-penteado-devido-ao-novo-gel-de-cabelo não conseguia emitir um ruído. As pessoas gritavam e berravam palavrões para o homenzinho enjaulado à sua volta, mas ele não conseguia tirar os olhos dele, tamanha sua fascinação. O homem não tinha nada parecido com ele, mas ele podia observar a expressão de medo em seus olhos e, de alguma forma, não podia deixar de se identificar. Ele tentou se lembrar de como era o mundo real, quer dizer, do lado de fora de Utopia. Nada. Utopia havia preenchido o vazio que tinha em sua vida e ele apagou todas as lembranças do mundo exterior, tão cheio de dor, sofrimento.Tão cheio de inverdades e mentiras. Tão cheio de tristezas. Em Utopia sua vida era perfeita. Era irreal. Se espantou com o pensamento que tomou a sua mente: sua vida era uma mentira. Ele não queria pensar isso mas, sim, era tudo uma mentira. Há quanto tempo ele não tomava um banho de chuva, se sujava na lama, despenteava o cabelo... Fez uma cara de nojo ao pensar nisso. É, ele precisava mesmo sair de lá correndo, antes que fosse tarde demais, se é que já não era... Não, não podia ser! Ele tinha que sair de lá.
Aproveitou o reboliço causado pela revelação da criaturinha e se esgueirou até o grande tablado, no lado de trás da jaula, onde ninguém podia vê-lo. Aquele lado do palco era escuro e úmido, diferente do outro, onde ficavam os holofotes. Chamou o homenzinho:"Psiu, ei você! Venha até aqui". O homem de cabelos compridos e barba, que vestia trapos, se assustou um pouco, mas logo se afastou da grande plateia que o vaiava e xingava e se dirigiu ao lado oposto de sua jaula, fingindo estar assustado com os gritos, para que ninguém estranhasse sua saída dos holofotes. O homenzinho perguntou para que o homem de cabelos brilhantes de gel o havia chamado. "Quero fazer um acordo" disse ao homenzinho. "Preciso que você fique com minhas roupas e eu ficarei com as suas". "Ok, mas o que vai fazer com elas?" o homem de belos cabelos sorriu com a estranha sonoridade das palavras da criaturinha cabeluda. Não era como a das outras pessoas na cidade, era falhada e um pouco rouca. "Eu quero sair de Utopia" respondeu-lhe. "O quê?! Você vai fazer mesmo isso? Achei que não fosse possível..." disse o serzinho por entre os dentes. "O que você achou não ser possível?". O homenzinho sorriu com o canto da boca:" Existirem pessoas que queiram sair de Utopia...Eu era como você, até o dia em que agi "contra as normas de Utopia" e fui forçado a sair daqui. Desde então vivo uma vida real, nada parecida com a fantasia que é este lugar. O mundo lá fora é cruel, mas é belo. É maravilhosamente imperfeito." o homem de cabelo com gel franziu o cenho, demonstrando quão confuso havia ficado. "É compreensível que você não me entenda...quer saber por que foi que eu voltei pra cá não é?" o homem fez que sim com a cabeça. "Pois bem, deixei muitos amigos aqui quando fui mandado embora e pensei que, se voltasse, poderia lhes dizer que estão enganados em achar que esse é o paraíso na Terra e provar a todos esses hipócritas habitantes de Utopia que eu estava certo em querer sair dessa prisão, mostrar-lhes como eu sou feliz. Caminhei durante dias até chegar aqui, mas me prenderam logo que consegui entrar... Olha, tudo bem, vou lhe dar minhas roupas mas prometa que vai voltar, eu não posso ficar aqui!". O homem parou pra pensar na condição imposta, mas disse ao final: "Sim, eu prometo que volto."
Eles trocaram as roupas ali mesmo, o homem de penteado impecável despenteou os cabelos e rumou para os portões de Utopia. A criaturinha barbuda respirou fundo e voltou aos holofotes, e a euforia da plateia era tanta em vê-lo novamente que ninguém percebeu que ele estava com as roupas trocadas. O homem de cabelos, agora sem gel, aproveitou que todos da cidade estavam no Centro de Convenções e atravessou o portal, sem a mínima dificuldade. O homenzinho no Centro de Convenções estava se sentindo exausto, com toda aquela gritaria e sem achar ninguém que houvesse conhecido nos tempos em que morava lá, mas podia se confortar com a ideia de que o homem que lhe procurou para pegar suas roupas voltaria, para libertá-lo da prisão que era Utopia. E ele voltaria ao mundo externo, ao seu mundo. As lembranças o deixavam feliz e faziam o tempo passar mais depressa. Acalentado com a brisa que outrora sentia em seu rosto, quando um tal homem elogiou seus cabelos arrumados, o homem-de-cabelos-agora-sem-gel sorria passando a mão por seus fios embaraçados e desarrumados, imaginando o que o esperava no mundo lá fora. Ele foi caminhando enquanto as palavras do homem barbudo ecoavam em sua cabeça: "vou lhe dar minhas roupas, mas prometa que vai voltar...". O homem de cabelos agora bagunçados abriu a boca em um enorme sorriso avistando os pastos verdes ao longe, o mato crescendo por todo lado, o sol iluminando as árvores somente de um lado, deixando o outro seco e sem cor, o canto estridente demais dos pássaros, o chão barrento....parou um instante e observou suas botas sujas de lama. Nesse instante, fechou os olhos e se deliciou com a sensação dos pés molhados, até que concluiu, sorrindo : "É, eu não vou voltar..."

6 comentários:

  1. Lindo demais! Às vezes nem acredito que mereci ter uma filha como você! Há quinze anos voce faz me parecer que a utopia pode ser real, ainda que num mundo maravilhosamente imperfeito. Te amo!
    Andrea

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  2. Muito lindo...emocionante e cheio de simbolismo...
    Parabéns pelo texto, parabéns pelo aniversário, querida menina.
    Beijo enorme
    Nil

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  3. Carolzita, parabens pelo texto, pelos 15 anos. E obrigada por alegrar e adoçar a nossa vida! Com amor e muitas saudades, tia andressa

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  4. Menina, pra nós que te vemos crescer, assim de longe, você sempre era vista como "a filha da Andrea". Vejo agora com toda a luz, que você é você. Você é a Carol. Claro que é filha da Andrea, a Andrea está aí no seu texto. Mas tua mãe te permitiu ser mais você. Logo, logo, a Andrea é que vai ser a tua mãe, a Ana vai ser a tua tia... Parabéns, feliz Aniversário!
    Janeslei

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  5. Isso ai Janes. Ela já é uma grande escritora para mim. Nunca esqueço de uma cena da Carol pequena deitada na calçada da casa da vó escrevendo folhas e folhas a tarde inteira. No final nos brindou - tinha acho que uns 6 anos - com uma história de suspense super inteligente. Carolina Caldas Nunes, uma estrelinha!

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  6. comentario do Vovo e Vovó:Que conto lindo e profundo.Mas este local que voce denomina Utopia me faz lembrar alguns condominios fechados que existem em todos os paises do mundo.Eu tambem tenho minhas utopias.Uma delas é que se abolice o dinheiro no mundo.Sei que quem ler isto,vai querer me por no camisa de força e me mandar para um hospicio.Mas, na minha utopia ,todos trabalharim sem receber salário,mas teriam o direito,de casa,alimentação,saúde,educação e lazer tambem gratuitamente.Seria a cópia do paraiso celestial,sem a chatura daqueles anjos com aqueles camisolo~es brancos e fora de moda.Um beijão do Vovo e Vovó.

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